No século XIX, os gaúchos travaram uma longa batalha contra o Império do Brasil durante a Guerra dos Farrapos. Durante as festividades da semana Farroupilha que relembram o episódio histórico, uma manifestação pregava o separatismo do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil.
A existência de movimentos para a constituição de um estado independente no sul não é novidade alguma. Há os que sonham com a construção do país Farroupilha, da República dos Pampas, do Estado Rio-Grandense. Há também os catarinenses e paranaenses que compartilham ideais separatistas e lutam pela criação de uma união federalista entre os três estados do sul do Brasil.
A trindade sulina
Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina formam juntos, de fato, uma região muito peculiar. A região que já foi predominantemente dominada por estancieiros portugueses e espanhóis recebeu uma enorme imigração de italianos e alemães. Os europeus constituíram colônias tão europeias que ainda hoje há regiões no sul em que pode se ouvir dialetos alemães e italianos. A colonização completamente diferente em relação ao resto do país foi responsável por criar características únicas na região. Há quem diga que o sul é um pedaço da Europa no Brasil.
A menor região em superfície territorial no Brasil, em contrapartida, apresenta os maiores índices de alfabetização no país, o maior IDH e o segundo maior PIB per capita.
Por mais que comumente sejam alvos de implicância por parte do resto do país, os sulistas possuem um orgulho de suas raízes completamente incomum a outras regiões do Brasil. Praticamente todo cidadão rio-grandense sabe o Hino de seu estado e o entoa a plenos pulmões durante festividades públicas e eventos esportivos regionais.
Em um recente artigo de ficção escrito para o jornal Zero Hora, o historiador Mário Maestri, o jornalista e escritor Elmar Bones e o professor de literatura Luiz Horácio projetam suas interpretações de como seria o país farroupilha caso os farrapos tivessem saído vitoriosos do conflito:
“Sem matérias-primas, sem petróleo, sem um porto decente como Montevidéu e, sobretudo, com uns raquíticos dois milhões de habitantes, restaria aos pampianos a produção de carne, de lã, os móveis e chocolates de Guaíba, uma raquítica agricultura, carente de implementos e agro-tóxicos, comprados a peso de ouro de São Paulo, e travada pelas barreiras alfandegárias sobretudo do Brasil. A saída seria transformar os pampas em um imenso deserto verde, igual que o Uruguai atual!” (Mário Maestri)
A República Rio-Grandense não é um delírio
Na verdade, a República Rio-Grandense não é um delírio e foi, sim, proclamada em 11 de setembro de 1836 pelo General Neto, após a vitória das tropas gaúchas na Batalha do Seival. O episódio é mencionado em uma passagem no excelente longa-metragem Netto Perde sua Alma.
O então Coronel Neto obteve uma memorável vitória ao conduzir sua brigada de 400 guerreiros “esfarrapados” contra os 560 homens de Silva Tavares, leal ao Exército imperial. Conta-se que o freio do cavalo de Silva Tavares se rompeu levando o animal a disparar em um galope para distante do combate. As forças imperiais acreditaram se tratar de uma retirada de seu comandante e desestabilizaram-se resultando em uma grande confusão.
Neto comandou pessoalmente a carga de seus temidos lanceiros negros para cima dos cavaleiros imperiais sob o comando do célebre futuro Ministro da Guerra, Major de Brigada João Frederico Caldwell. Gravemente ferido na mão, Caldwell – que lutara com distinção ao lado do comandante farroupilha Bento Gonçalves durante a Guerra Cisplatina– viu sua tropa ser subjugada pelos revoltosos que poucas baixas sofreram.
Os gaúchos invadem Porto Alegre
O conflito entre os Farrapos de Bento Gonçalves e o Império do Brasil iniciou quando o Império pouco fez em relação a desleal concorrência por parte dos hermanos argentinos e uruguaios na comercialização de charque nos estados brasileiros cafeicultores. Os gaúchos pregavam o aumento da tributação às importações castelhanas, já que o crescimento das exportações de café supervalorizou o câmbio nacional tornando a aquisição de carne brasileira desvantajosa.
A insatisfação regional ficou insustentável quando o Império nomeou um novo Presidente para a Província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga. O novo presidente, encarregado de acalmar os ânimos, chegou acusando os revoltosos e apontando nomes de possíveis separatistas. Revoltados com o gesto, sob o comando do amigo Bento Gonçalves, diversos estancieiros dos pampas decidiram tomar Porto Alegre.
Gomes Jardim e Onofre Pires conduziram seus homens até ao bairro da Azenha, na capital. Lá, detiveram quaisquer pessoas que pudessem delatar a ação. Bento Gonçalves comandou de Guaíba uma tropa de estancieiros experientes em combate, veteranos de diversos conflitos com os castelhanos. Em 20 de setembro de 1835, Fernandes Braga fugiu e os gaúchos invadiram Porto Alegre sem encontrarem resistência alguma. “Foi o 20 de setembro, o precursor da liberdade”, como diria mais tarde Joaquim José Mendanha ao compor o hino gaúcho.
Começava a Guerra dos Farrapos.
Bento Gonçalves teria enviado uma respeitosa carta ao Império explicando as raízes do problema e as reivindicações farroupilhas. Todavia a história contada pelo covarde Fernandes Braga, que fugira do combate, era muito diferente. O Imperador enviou tropas para o Sul separando em dois lados os combatentes brasileiros que um dia voltariam a empunhar suas espadas lado a lado.
Veterano e herói na sangrenta batalha de Passo do Rosário, Manuel Marques de Souza ao lado de Manuel Luís Osório permaneciam leais ao Império. Do lado das tropas farroupilhas estavam João Manuel de Lima e Silva, tio do que viria a se tornar o importante Duque de Caxias, que em seguida prendeu o Major Marques de Souza.
O Major Marques de Souza, futuro Conde Porto Alegre, conseguiu fugir da prisão farroupilha e comandou uma investida que tomaria a capital novamente. Bem protegida, Porto Alegre não sucumbiu às investidas de Bento Gonçalves que decidiu sitiar a cidade por 1283 dias, caracterizando um dos maiores sítios militares à uma cidade brasileira em todos os tempos.
Os revoltosos possuíam um exército formado por habilidosos cavaleiros lanceiros, os gaúchos, caracterizando uma tropa ágil e de grande mobilidade. Não possuíam, contudo, infantaria e artilharia capazes de tomarem cidades bem fortificadas. Ainda influenciados pelos ideais da Revolução Francesa, os Farrapos acreditavam na democracia e no poder distribuído ao povo ao invés de um poder centralizado na elite imperial em grande parte portuguesa. Longe de Porto Alegre, a sede do novo governo republicano é transferida para a cidade de Piratini.
Posteriormente à declaração da República, Bento Gonçalves parte para se juntar às tropas de Neto, mas Bento Manuel, primo do outro Bento e leal ao Império, toma conhecimento da movimentação Farroupilha. Ao atravessar o rio e entrar na Ilha de Fanfa as tropas farroupilhas eram esperadas pela Marinha com 18 barcos de guerra. Na retaguarda chegavam às tropas de Bento Manuel por terra cercando totalmente os soldados farrapos.
Convicto da vitória, Bento Manuel foi surpreendido pela bravura dos homens de Bento Gonçalves que recusaram a rendição e partiram para o combate.
Após ver todos os ataques imperiais serem repelidos, Bento Manuel levanta a bandeira do parlamento e pede negociação. Concorda em permitir que os Farrapos voltem para suas casas contanto que entreguem a província. Bento Gonçalves aceita os termos, mas ao se render é covardemente preso pelo Presidente imperial da Província e levado até o Rio de Janeiro com seus comandantes.
No Rio, os oficiais farroupilhas organizam uma fuga, sendo que um amigo de Bento Gonçalves acaba entalado em uma janela. O comandante Farrapo decide ficar com o amigo enquanto seus importantes oficiais escapam e voltam para o front no sul. Transferido para a Bahia, Bento consegue finalmente fugir e retorna ao Rio Grande do Sul, onde é nomeado Presidente. O Império nomeia um novo Presidente imperial para a Província que caçava quaisquer simpatizantes de ideias republicanas.
Bento Manuel fica insatisfeito com a atitude do novo Presidente. Em uma brilhante manobra militar, termina por prendê-lo e decide se juntar ao Exército Farroupilha. Com a ajuda do novo comandante, as forças gaúchas derrotam o enorme contingente na inexpugnável fortificação em Rio Pardo tornando-se uma real ameaça aos dois últimos grandes redutos imperiais em Porto Alegre e Rio Grande.
O prestígio dos ideais republicanos é tanto que cidades catarinenses decidem se aliar ao movimento, resultando em uma preocupação sem precedentes ao governo imperial. Revoltas separatistas ecoam pelo Império e o cresce clamor nacional pelo surgimento de um estado republicano.
Em seguida, Bento Gonçalves nomeia como comandante da Marinha Rio-Grandense, Giuseppe Garibaldi que, em uma das mais estranhas e ousadas manobras militares da história da Marinha, toma Laguna (SC) conquistando para os gaúchos uma saída para o mar, já que os portos de Rio Grande e Porto Alegre eram controlados pelo Império.
Lá, Garibaldi e Teixeira Nunes travariam várias batalhas até as forças republicanas serem dizimadas tendo retornado apenas 50 soldados ao Rio Grande do Sul, de um total de 500.
O evento mudaria a história dos embates, que a partir deste momento contabilizariam inúmeras vitórias para os Imperiais. A instabilidade crescia, pois os Farrapos não desistiam de suas posições e contra-atacavam em cada território perdido independente do número de baixas sofridas.
Em novembro de 1842, o ainda Barão de Caxias é nomeado Presidente imperial da Província, traz Bento Manuel de volta para seu lado o nomeando comandante militar e muda a estratégia contra os revoltosos. O Barão de Caxias usou sua inteligência e estratégia militar impecável para causar significativas perdas aos farrapos que aceitaram receber o General Osório para dialogar.
“Primeiro de tudo, somos brasileiros”
Levado até Caxias, o grande cavalariano farroupilha General Canabarro teria ouvido do comandante do Rei “que a revolução tendia a desaparecer pela falta de elementos para prosseguir”. E Canabarro, de imediato, lhe respondeu:
“Engana-se, general. Ainda temos elementos próprios para sustentá-la por muito tempo. Se quiséssemos vencer a todo transe, poderíamos fazê-lo. Leia esta carta e se convencerá. Mas, note que não aceitamos o concurso estrangeiro, porque primeiro de tudo, somos brasileiros e em caso algum admitimos o auxílio da castelhanada.“
Tal carta referia-se a uma resposta do General Canabarro ao ditador argentino Rosas, que mandou emissários propondo aliança com o líder farroupilha:
“Senhor: o primeiro de vossos soldados que transpuser a fronteira fornecerá o sangue com que assinaremos a paz com os imperiais. Acima de nosso amor à República está nosso brio de brasileiros. Quisemos ontem a separação de nossa pátria; hoje, almejamos a sua integridade. Vossos homens, se ousarem invadir nosso país, encontrarão, ombro a ombro, os republicanos de Piratini e os monarquistas do Sr. Dom Pedro II.”
O armistício estava garantido.
“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra”
O Império propunha um cessar-fogo garantindo liberdade a todos os farrapos, incorporação dos oficias rio-grandenses ao Exército Imperial mantendo seus atuais postos, patentes e o principal: taxação do charque hermano. A ideia parecia promissora, mas o Exército Republicano aboliu a escravatura e soldados negros eram tratados como iguais entre os farroupilhas. O Exército Imperial não poderia admitir negros sendo incorporados às suas linhas de combatentes.
Em março de 1845, é assinado o Tratado do Poncho Verde dando fim a guerra, garantindo o direito de negros libertados pelos gaúchos ingressarem no Exército Imperial e permitindo aos rio-grandenses escolherem seu Presidente de Província.
O valor do nobre Barão de Caxias e sua honra impecável para com os republicanos lhe garantiu uma indicação ao Senado pelos próprios farroupilhas, o título de Conde de Caxias e mais tarde a presidência da Província. Como na letra de Joaquim José Mendanha, o sul deixava um importante legado para a formação do atual estado brasileiro: “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra”.
Ainda em 1845, Dom Pedro II visitaria a Província gaúcha. Tamanha era a consistência da paz criada por Caxias, que o próprio Bento Gonçalves prometeu lealdade incondicional ao Império. Logo em seguida Canabarro e Bento Gonçalves lutariam ao lado de Osório e Marques de Souza na Guerra do Prata, consagrando mais uma vez a supremacia militar brasileira por meio de seu exército invicto, que agora garantia a independência do estado uruguaio e paraguaio.
A prestigiada e temida cavalaria gaúcha seria novamente decisiva na maior de todas as guerras já travadas na América Latina, a Guerra do Paraguai. Novamente, sob o comando de Duque de Caxias e Marechal Osório, o Marquês do Erval e patrono da cavalaria, as forças brasileiras derrotaram o Paraguai nos mais difíceis combates que o Brasil já travou.
A guerra – que resultou na perda de 90% da população paraguaia, incapacitando para sempre aquela potência hegemônica em ascensão – provou a lealdade dos lanceiros negros ao Brasil e a unidade político-territorial de nossa nação.
Os separatistas de hoje provavelmente deixaram de comparecer as aulas de história ou esqueceram que seus antepassados farroupilhas derramaram sangue para defender esse país. Deveriam ao menos ter lido o artigo ficcional no Zero Hora sobre a atual rural e politicamente insignificante república dos pampas separada do gigante brasileiro.